terça-feira, 18 de maio de 2010

Cena Peculiar no Futuro


Dirijo por essas ruas semi-desertas sem um destino certo, absorto em lembranças. Apenas guio, tentando reconhecer avenidas e ruelas de outros tempos, tendo de desviar vez que outra de algum saco de lixo ou coisa que o valha. As ruas estão bem judiadas, sujas; parece que não foi feita nenhuma manutenção de verdade desde a minha partida para as zonas de conflito, em missão. Talvez a causa seja a escassez de transeuntes e automóveis, ainda maior que noutros tempos. As pessoas quase não saem de casa; não precisam. Suas vidas virtuais, mil vezes mais interessantes e cheias de conteúdo e cores, não requerem deslocamento físico. O que não podem receber pela fibra óptica, recebem pelos entregadores, nas suas milhares de vans singrando o labirinto urbano em altas velocidades.

Diferentemente das classes mais baixas, os excluídos digitais, trabalhadores que precisam se deslocar ao local de trabalho, a camada privilegiada sai às ruas basicamente para se divertir. O que ainda hoje me causa espanto, mesmo sendo eu um soldado treinado para enfrentar o pior do ser humano, são os tipos de diversões que vêm se banalizando a cada dia: a maioria envolve violência e barbárie, pura e gratuita. O respeito pela vida e integridade do ser humano, especialmente o das camadas minoritárias, vem se tornando, na mente dos jovens da elite, discurso de intelectuais antiquados. Nas ruas eles buscam aquilo que os códigos binários não transmitem com perfeição, aquilo que não está no programa, o que 'ainda' pode impressioná-los: o cheiro de sangue, o grito de dor, a adrenalina liberada espontaneamente. Quanto ao código judiciário, desde o tempo dos meu velhos só se faz corromper a cada dia, além de estreitar cada vez mais seu campo de ação (ou 'classe social' de ação). Não sei se um dia vou entender como atecnologia e a barbárie podem habitar em tal simbiose o mesmo ser humano.

Vejo ao longe o desenrolar de uma cena: um carro branco pára bruscamente, rente à calçada; desce a motorista, uma moça loira, aparentando 22 anos, cabelos cacheados, rosto delicado, baixinha mas com uma bela bunda; contorna o automóvel, aparentando irritação, abre a porta do lado do passageiro e puxa um homem pelo braço, um tipo de aproximadamente um metro e noventa, aparentando 35 a 40 anos, bem constituído mas, pelas vestes, acusando sua posição social: provavelmente um michê, mas de um novo tipo que vem se popularizando, os 'gamas'. São excluídos digitais não muito chegados ao trabalho, que recusaram-se ao treinamento militar e escolheram essa profissão pra não passar fome. Filiados a um tipo de agência, são "alugados" a clientes com os mais diversos propósitos, nem sempre sexuais. Na prática, são praticamente destituídos de direitos, do que os(as) clientes, na maioria da elite, muito se aproveitam. Pelo estado de espírito da moça, parece que o enredo que se afigura será um belo exemplo disso.

Paro o carro a uns vinte metros da da cena e ponho-me a observar. Não que eu goste do que presumo vai acontecer, mas porque tenho de me ambientar de novo com minha velha cidade, ou o que ela está se tornando. A moça puxa o homem até o meio da calçada, começa a xingá-lo energicamente, gesticulando muito, até que desfere o primeiro soco no seu rosto. Belo cruzado, que faz a cabeça do cara girar quase noventa graus. Ele não reage. Sabe que, se o fizesse, só teria a perder. Para os gamas há duas opções: ou apanham quietos ou registram queixa, não ganham nada e correm o risco de serem mandados à zona de exclusão. Ou podem também fugir do(a) cliente, arriscando serem denunciados à agência e terem o mesmo destino; no melhor dos casos, são apenas demitidos e têm o nome (ainda mais) sujo. A moça, furiosa, continua a dispensar-lhe todas as ofensas imagináveis, e não demora a desferir o segundo golpe, dessa vez com a outra mão. Acerta em cheio; chego a ouvir; a menina sabe bater. Noto o primeiro filete de sangue no canto dos lábios dele. A cena é insólita: tendo no máximo um metro e sessenta e cinco, ela precisa quase pular para acertar o rosto daquele homenzarrão.

Começam a aparecer os primeiros espectadores com suas mini-filmadoras, hoje tão comuns quanto relógios. Formam um círculo em volta do desarmonioso casal, numa respeitosa distância, para bem assistir ao espetáculo. Não há gritos nem palavras de ordem. A agressora não liga para a aglomeração, talvez até goste, se sinta importante ou coisa que o valha. Hoje, essa questão de imagem é algo muito mais liberal, ninguém se importa se está sendo filmado ou não, todo mundo tá na rede. Outra coisa que me espanta é o crescente número de meninas e mulheres nesses "eventos", há tempos superando o sexo oposto. Assistem hipnotizadas, admiradas mas não chocadas, tentando registrar os melhores ângulos, direcionando os aparelhinhos ora para o rosto ensangüentado do homem, ora para as mãos igualmente rubras dela, depois para o seu rosto de ódio. Criam espécies de enredos, pra depois curtirem em casa e trocarem com as amigas, ou mesmo se masturbarem, vai saber. Chegam ao ponto de pedir pra castigadora mostrar os punhos vermelho, pra captarem o close, ao que esta atende prontamente. Noto que algumas tocam suas partes íntimas através do bolso da calça, excitadas pela cena, talvez pelo cheiro se sangue.

Uma grande energia começa a irradiar daquela multidão. Excitada, sentindo-se a estrela do espetáculo, nossa abastada e inescrupulosa loirinha parte pra valer contra o pobre homem. Cansando suas mãos de tantos socos e estalados tapas na cara, começa a chutá-lo nas canelas e coxas, sempre xingando-o. Ôh! patricinha malvada... por que estaria tão brava? Será que o cara desapontou-a ou foi alugado só pra esse propósito? Infelizmente isso vem acontecendo. Também não entendo por que o homem recebe os golpes tão passivamente, se é por medo das conseqüências possíveis ao fugir ou se está tão excitado quanto sua carrasca e a sanguinolenta platéia. Por ter observado cenas parecidas, estou levemente inclinado a apostar na segunda hipótese. E eu conheço bem esses gamas... Se eu quisesse, poderia acabar agora mesmo com esse showzinho bizarro, indo até lá, mostrando minhas credenciais de soldado e mandando a multidão se dispersar. Globalmente, no entanto, isso não faria a menor diferença, e eu estou decidido a apenas observar.

O espetáculo de selvageria vai ganhando aspectos tragicômicos, por não achar palavra mais adequada. Quanto mais energicamente a garota surra o homem, mais excitadinhas vão ficando umas meninas que assistem de perto, filmando. Não sei se estou interpretando bem, mas acho que uma delas pediu pra loirinha repetir uma patada que dera no peito do gama. Outra pediu pra ela parar um pouquinho, pra registrar de perto o olho inchado dele. A loirinha é interrompida a toda hora, aliás, para responder perguntas, ouvir o que as meninas têm a dizer (talvez sugestões de golpes), ora para posar pra uma foto abraçada a uma das malvadinhas, ora pra receber um beijo de outra mais atrevida. Uma chegou ao cúmulo de pedir pra "sentir o gostinho" de dar uma porrada na cara, ao que foi atendida. O pobre gama já não consegue ficar ereto de tantos socos, chutes, joelhadas no saco e na barriga que recebeu.
Já deve ter perdido pelo menos uns quatro dentes, se não pelos socos, pela seqüência de três caprichados joelhaços que sua carrasa aplicou-lhe, puxando-o pela gola. Seus olhos estão quase fechados, ele está parecendo o Rocky Balboa. Se não largar essa vida, vai demorar pelo menos uns dois meses pra poder encarar a próxima cliente.

O espetáculo aproxima-se do final; nossa nervosa loirinha já está cansada, ofegante, com gotas de suor brotando-lhe nas faces coradas. As meninas em volta estão excitadíssimas, quase coladas à rainha sanguinária, atrevendo-se a roubar beijinhos quando esta se distrai. Saio do carro e vou até lá.
Fiquei um bocado curioso sobre algumas coisas. Camila, a loirinha má, é o centro das atenções. Suas novas fãs disputam-na ferrenhamente, todas querem tocá-la, beijá-la, abraçar, tirar fotos com ela em pose de lutadoras. O cheiro da volúpia espalha-se pelo ar. Secam seu rosto, limpam suas mãos ensangüentadas, massageiam-nas, beijam-nas com amor. O gama fica sentado no chão, recuperando-se, escorado num muro. Umas meninas vão filmá-lo, posam ao lado dele, rindo e fazendo sinal de positivo, perguntam como ele se sente depois de tamanha surra, riem e debocham. Quanto a ele, responde educadamente até às mais insultosas perguntas, sem demonstrar qualquer irritação. Chega mesmo a ensaiar um sorriso com sua agora rota arcad, ao qual uma garota aproxima seu angelical e perfeito sorriso, para uma foto. É óbvio que ele tá excitadão. Esses gamas não valem nada... Uma garota traz um dente dele, faz menção de entregá-lo e, quando o cara estende a mão, lança-o a grande distância, num córrego imundo. Todas riem, até ele, estupidamente.
Eu mesmo me excito com a cena, e censuro-me por isso. Por fim, algumas o cospem, registram a cena e se afastam. Uma das meninas, generosa, oferece-lhe uma cópia do "filme" e, recebendo resposta afirmativa, registra seu código digital (uma evolução do email). e eu, otário, preocupado com esse sem-vergonha...

Volto minha atenção a Camila. Não posso deixar de rir quando uma coroa agradece-lhe com grande alegria, dizendo que só cenas como essas que ela acabou de filmar fazem seu marido "dar no couro". A fila agora é para os beijos de despedida, elogios e trocas de códigos digitais (Camila já recebeu sua cópia e fotos). Um adolescente pede pra levar um tapa e é ignorado. Outro pede pra beijar os pés dela, mas tem igual sorte. Meninos estão perdendo espaço nesses acontecimentos, percebo. A coisa se inverteu.

Reparo que Camila despertou especial fascínio numa das garotas que assistiam de longe. Deleitam-se agora num apaixonado e lascivo beijo de língua, enquanto todos se afastam. A vítima, completamente ignorada, recupera-se da tontura e das escoriações, para pegar um ônibus de volta pra casa. Terminado o beijo, cinco minutos depois, as amantes entram no carro branco e entregam-se a carícias mais ousadas, antes de partirem cantando os pneus, provavelmente para um motel. Depois de tanta atividade, nada melhor que um gozo intenso.

Sou o penúltimo a deixar a cena. Acho que a aventura de reconhecimento de hoje já está de bom tamanho. Minha velha cidade, meu povo mudou bastante, sem dúvida. Sexo e barbárie em perfeita simbiose... Será que eu vou me acostumar com isso?

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