terça-feira, 18 de maio de 2010

Catarina


Acordou com a boca seca. Uma preguiça danada de levantar, mas olhou através da porta e viu a luz do banheiro acesa. “Droga”, pensou, “podia jurar que tinha apagado”. Podia jurar também que tinha tirado a maquilagem, mas agora já não tinha tanta certeza, os pés tocando o chão frio (“cadê o tapete, merda?), uma pontada do lado direito da cabeça lhe fazendo lembrar que tinha bebido além da conta outra vez. Andou cambaleante pro banheiro pensando no Carlos Alberto, o idiota que a irmã tentou empurrar pra cima dela no Baile de Formatura do sobrinho. Quase deu de cara no batente da porta, mas pelo menos descobriu onde estava o tapete. Carlos Alberto... só podia ser idiota, com esse nome de galã decadente no decadente Baile de Formatura. “Por que o mundo gira tanto, Meu Deus? Que saco!” Esticou a mão pra pegar o papel higiênico e descobriu que não tinha. Arrancou a calcinha e foi embora pra cozinha. Sentiu o resto de urina que escorria pelas pernas e lembrou Dele, que nunca deixava que ela se limpasse depois de mijar... gostava de vê-la andar, um filete do líquido ainda quente escorrendo pela perna. Olhou pro sofá e quase pode vê-lo ali, sentado na penumbra, olhando pra ela como fazia toda vez que ela saía do banheiro. Teve vontade de chorar e se odiou, odiou o vinho barato que fazia a cabeça doer, odiou a irmã, o sobrinho, o Carlos Alberto e a louça na pia. Abriu a geladeira: só uma garrafa vazia. Girou a torneira e enfiou a cara debaixo dela com tanta impaciência que se engasgou; tossia compulsivamente, os olhos cheios d’água... quando se acalmou, deitou a cabeça sobre os pratos, os cabelos em meio aos restos de comida. Sentiu as mãos dele pressionando sua cabeça pra baixo, a água no ouvido e a sua voz baixa e firme: “agora você vai se lembrar de lavar a louça, vadia”... Começou a chorar descontroladamente, o rímel escorrendo num pedaço boiante de batatinha souté. “Por quê? Por quê?” Deu um soco a esmo e viu o sangue brotar na mão... deixou pingar sobre a batatinha com rímel, fazendo um desenho; começou a rir, depois a gargalhar... chorava e ria... Enfiou a mão na água corrente e sentiu arder... queria que doesse, que machucasse mais do que a falta dele. Queria que ele morresse: olharia para aquela cara de cera no velório e desataria a rir... se imaginava pegando uma cadeira pra trepar no caixão, levantando o vestido de bolinha da avó dele que o pervertido fazia ela usar. Marcava numa estação de metrô sempre bem longe da casa dela; tinha que ir de chapéu, luvas, meias 7/8 e uns sapatos menores que os pés... e nunca podia se sentar nem usar a escada rolante. Era sempre em horário de pico, normalmente num calor escaldante, os pés inchando naqueles sapatos horrorosos. Um dia entrou mancando no trem e depois apanhou tanto que perdeu a conta das chicotadas. Iria com o vestido ao velório dele, treparia no caixão e mijaria naquele corpo inerte, naquele pinto inútil, naquela cara cheia de algodão. “Que merda!”, choramingou.

Entrou no chuveiro. Fazia calor, mas girou a chave pra temperatura mais quente e ficou sentindo a carne arder e se avermelhar. Via a medalha de São Judas esfregar entre os seus seios quando ele ficava sobre ela, metendo com força enquanto ela mal sentia as pernas, totalmente abertas e presas nas correntes; às vezes ele a prendia de manhã e só a possuía de tarde. Sumia pela porta e voltava pra fazer suas “experiências”. Às vezes colocava um objeto dentro dela, deixava lá um tempo; numa ocasião depilou-a até o ânus e depois jogou calda de chocolate quente; vendada, sentiu que algo caminhava sobre ela e urinou só pela possibilidade de ser uma aranha... mas o pior era quando sumia e a deixava sozinha por horas sem uma palavra, um som, nada. Se ao menos conseguisse dormir... Por que agora, que queria estar totalmente bêbada, se sentia absolutamente sóbria? Enroscou a faixa do roupão na mão pra estancar o sangue, abiu uma garrafa de gim e foi pra varanda. Ventava um pouco... sentiu frio. Tantas vezes ele meteu nela ali, de pé. Sabia que ela morria de medo de altura, então tinha o cuidado de amordaçá-la antes de debruçá-la na grade, com os braços pendentes, pra meter no seu cu. Alternava estocadas fortes com lambidas suaves nas suas costas... ela sentia tanto medo que gozava alucinadamente. Ficou bebendo ali, nua, tremendo um pouco... o álcool queimando a garganta... Estava amanhecendo. Jogou o resto de bebida sobre os seios e deitou-se na espreguiçadeira, abriu bem as pernas e forçou a garrafa pra dentro... não o gargalo, mas o bojo. Doía tanto, não a garrafa lhe dilacerando, mas a saudade... que ela enfiava ainda com mais força, as lágrimas brotando novamente nos olhos... sentiu uma ânsia de vômito, virou o rosto e viu o jornal jogado ao seu lado, a manchete que havia lido pela manhã, agora com as letras embaralhadas pelas lágrimas dela... “O Bispo...” “... é nomeado Cardeal...” Socou a garrafa com mais força e apagou.

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